Já não sou eu
Que escrevo esta poesia
Vejo corpos
Descrevo corpos
Que ora sangram
Ora gemem de prazer
A poesia do gozo
Em pleno êxtase
Gemendo
Do falso gozo
Ejaculações sem esperma
Que jamais se comparariam com
O prazer e o gozo de uma mulher
Nua
Em lençóis
Enquanto lá fora
Na rua
Ou aqui dentro
Também na rua
Porque a rua é uma casa
Para muitos
Não somente para os miseráveis
Como também para aqueles
Que sempre vivem
Fugindo
Sobreviver em meio a guerra
O sangue de Abel ainda jorra
Aviões vomitam rosas
Bombas atômicas
Mas o tempo da guerra
Não havia passado?
Já não sou eu
Que vivo
São partes de mim
Que gritam
Diante do deus mais cruel
O silêncio absoluto
Da surdez elétrica
De mil micro
Auto-falantes
Contar o tempo
É a única maneira de sobreviver
Em um quarto escuro
O céu está
Caindo
Não olhe para trás
O Brasil contemporâneo
A arte contemporânea
A nudez
A música de Caetano Veloso
As ditaduras
A fome no Ocidente
A prosa
O avanço do HIV
A poesia de Mia Couto.
Já não sou eu
Que escrevo esta poesia
Mas ela transborda e rompe com força
Como um rio furioso
O sentido do ser
A vontade de algo
Que lembra o tudo
Em dias que só resta
O nada
Somos e não estamos
Sobreviver a própria vida
Nos faz humanos e desumanos
Porque somos o nosso próprio contrário
Atores abobalhados diante de uma platéia exigente
Bêbados chorosos
Prostitutas ácidas
Testemunhas do incompreensível
Partimos
Para o interior do mais imundo dos verbos
Deixem as palavras
Falarem por si mesmas
Já que a beleza sempre esconde
A imundice e a megalomania.