quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Criação

Falar do mais simples
Daquilo que é fundamento de tudo
No princípio
Havia o verbo
Tudo foi feito
A partir de conjugações
Mãos que moldam o universo
Cuja imagem e semelhança
Corroendo metais
Construindo aeronaves
Vomitam rosas
Atômicas.

O inevitável poderia ser óbvio
Mas nada é tão sensível
À luz do sol
O que nos aproxima
São os nossos defeitos
Isso nos faz tão próximos e parecidos
Ao contrário
Nossas qualidades
Nos diferenciam
Nos separam 
Ao contrário
Ser uma representação imperfeita
Do avesso
O que nos liga ao divino
São os nossos adjetivos.

A tarde caía tão calmamente
Que por um instante
Quase esquecemos do terror
A beleza nos chocava
Porque era possível escutar
Os gritos de guerra
Que chegavam como lágrimas
Através do tempo e do vento
Embora intensamente vivo
O Éden estava calado
Com uma triste e estranha
Sensação de segurança
Sabiam que ninguém era louco de verdade
Para queimar um jardim de soja. 




domingo, 3 de janeiro de 2021

Milagres

Milagres ocorrerão
Antes que essa poesia chegue ao fim.

No corpo da prostituta
Que se sentia nua
Embora vestida
A passos largos pela rua
O barulho de seus saltos
Se combinava com o de sua respiração
Ofegante e de assaltos
Quantos homens ali passaram?
Naquele corpo?
Naquela rua?
Naquela mulher nua?

No corpo daquela prostituta
Como uma lâmina
A riscar seu ventre
Sem derramar sangue;
Mas no seu corpo
Como também na cidade
Refletida em seus olhos cansados
Estava a noite 
Que já sem forças
Sentia as dores do parto
Já eram distinguíveis
Os gritos do dia
Que nascia
Só aquela prostituta 
Na rua, nua
Via.

O dia nascia
Com uma força que parecia
Redimir os pecados do mundo inteiro
Só aquela prostituta não recebia perdão
E ela bem sabia
O dia nascia
Só ela via
A passos largos
Uma mulher nua
Na rua.

Ao cumprir uma certeza
O filho nasceu matando a mãe
Assim as trevas se dissipam
Com o despertar da luz
Da noite só lhe restou memórias teimosas
E uma dor de cabeça 
Que não se resolvia com aspirinas
A prostituta
Agora de fato nua
Longe da rua
Num pequeno apartamento 
Calada
Tentava dormir
Mas, a cidade berrava.

A cidade berrava
Os automóveis gemiam
Os parafusos cochichavam 
As antenas dedilhavam
O concreto falava
Os signos, as letras, os números, os verbetes
Explodiam na atmosfera cinzenta, poluída e tóxica
Nada estancava
Era impossível dormir.

Chaminés fumavam enlouquecidamente
Fumaça negra que matava o dia que mal nascera
A ardência do fedor de carne queimada
Entorpecia a todos
Só assim
Embriagada
A prostituta conseguia dormir.